sábado, 31 de março de 2012

Eu, tu, ele... reclama, de barriga cheia

Ádria estava cansada da papelada que havia levado para casa. Suspirou forte antes de largar tudo à mesa. Levantou-se, nem ligou a tv, era hora do jornal. Pra que mais tragédia? Tenho dor de cabeça o bastante. 
Foi para a janela de seu pequeno apartamento, janela do quarto. O abafado trânsito chegou aos seus ouvidos ao abrir e um vento adentrou o espaço, remexendo seus cabelos levemente. Era algo morno, mas agradável, coisa de litoral. Até mesmo arriscava dizer refrescante, pois sua cabeça cheia de problemas sentia então tudo arejar. Tanta gente relaxando a essa hora e ela com toda uma carga? Ah, as pessoas são felizes e não sabem, reclamam demais, pensava ela apoiada no parapeito, olhos cerrados para abstrair-se daquilo que a incomodava. 
Os mesmos olhos saltam, um, dois segundos depois ao ouvir o barulho de uma garrafa se espatifar ao bater no chão da avenida quatro pavimentos abaixo de sua residência particular, vindo do meio fio. Chamada a atenção, entrecerrou-os para observar melhor o que era... Ah, um bebum tropegando por lá. Poderia estar fazendo algo mais útil... isso ela pensando sobre o cara lá embaixo. 

O cara lá embaixo... ele mesmo queria trocar de nome. 
Queria ter bebido o conteúdo daquela garrafa que tinha em mãos, que pegou do bar num surto de raiva ao encontrar sua mulher com outro. Segurou-se para evitar confusões, era melhor sair dali. Saiu, vagou, andou várias avenidas, sem rumo mesmo. Que eu tinha feito de errado? O que eu fiz ou não fiz? Questões e mais questões dominavam sua mente. Andando por qualquer lado, uma hora, assim do nada, quis andar só num meio fio. Desceu toda uma avenida, passando por áreas comerciais e residenciais, os carros nas pistas ao seu lado corriam de acordo com a noite de sexta. Debatia com ele mesmo toda a cena que viu no bar. Na verdade nem chegou a entrar, só viu, pegou uma garrafa qualquer que tinha numa mesa na calçada, onde um bebum já roncava cedo da noite, saiu. Um acesso de raiva e cólera o dominou ao perceber que nenhuma conclusão a que chegava era o bastante... não explicava o que ele queria saber. O brilho dos cacos na grama do meio fio refletiam a luz dos postes da avenida. Ninguém parou para observá-lo, estavam todos com suas vidas, reclamando, falando mal de algo, sem estar de fato em má situação. Todos tinham problemas, ele mesmo tinha os seus e agora mais outro. Mas sempre tem alguém que é pior. 

Parado, ainda olhando os cacos próximos ao seu sapato, pensa que, mesmo em uma situação crítica, mesmo cheio de problemas, mesmo reclamando deles, ainda tinha uma vida melhor que muitos outros que vivem nas ruas. Mesmo na merda, ele tinha suas poucas felicidades. Tinha trabalho, casa e "esposa". É, muita gente é feliz e não sabe. Essa merda que todo mundo reclama, como muitas vezes ele já reclamara e ainda vai reclamar mais, por força de hábito quase cultural, não é nada em relação a outras merdas e injustiças do mundo. Tinha gente com pior e melhor vida que ele, belos reclamões. 

Ádria ainda observou o bebum por uns minutos. Não parecia tão trôpego, até que tinha equilíbrio bom o bastante para se agachar perto da garrafa que quebrara ali a pouco. Devia estar tendo visões e filosofias, epifanias e algo mais. Que ela ainda fazia ali observando-o? Tinha que voltar para sua papelada, tinha mais o que fazer... a dor de cabeça não cessara, mas havia dado um desconto. Ah, queria ela estar descansando, relaxando, de pernas pra cima, vendo qualquer bobagem do que terminar de arquivar tudo aquilo que o chefe pedira. Ô povo que reclama de barriga cheia. 

um dia eu volto e reorganizo a ideia melhor.

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