sábado, 31 de março de 2012

Nostalgia e procura de satisfação

SABINO, Fernando. O encontro marcado. Rio de Janeiro: Record, 2006.

"[...]
- O que é que tem importância, então?
- Para mim? Mais nada. Para você, escrever. Fazer do seu arrependimento uma boa literatura.
- Não me arrependi ainda. Talvez ainda possa evitar...
- É impossível. O sentimento não é bem de arrependimento, é uma espécie de nostalgia - já lhe disse isso. Nostalgia daquilo que a gente não é, dos lugares que a gente não esteve, das coisas que não chegou a fazer... Se você não tiver isso, se um dia se sentir satisfeito, pode ter certeza de que você não é mais escritor.
- E será ruim, isso?
- O quê? Não ser escritor?
- Não: se sentir satisfeito, não ter essa espécie de nostalgia.
- Seria até bom, se não fosse o risco de ficar apenas com a outra espécie de nostalgia: a de tudo que a gente realmente viveu. Uma precisa da outra, para se transformar em experiência."

De tirada em tirada, a gente só quer crescer, amadurecer.
De leitura em leitura, de escrita em escrita, de conversa em conversa, de música em música...
Incessante busca, amigo Eduardo, não tem como ficar parado, nem mesmo se cair. 
E de tudo, temos alguma história... inventada, entendida, procurada, vivida. 

Eu, tu, ele... reclama, de barriga cheia

Ádria estava cansada da papelada que havia levado para casa. Suspirou forte antes de largar tudo à mesa. Levantou-se, nem ligou a tv, era hora do jornal. Pra que mais tragédia? Tenho dor de cabeça o bastante. 
Foi para a janela de seu pequeno apartamento, janela do quarto. O abafado trânsito chegou aos seus ouvidos ao abrir e um vento adentrou o espaço, remexendo seus cabelos levemente. Era algo morno, mas agradável, coisa de litoral. Até mesmo arriscava dizer refrescante, pois sua cabeça cheia de problemas sentia então tudo arejar. Tanta gente relaxando a essa hora e ela com toda uma carga? Ah, as pessoas são felizes e não sabem, reclamam demais, pensava ela apoiada no parapeito, olhos cerrados para abstrair-se daquilo que a incomodava. 
Os mesmos olhos saltam, um, dois segundos depois ao ouvir o barulho de uma garrafa se espatifar ao bater no chão da avenida quatro pavimentos abaixo de sua residência particular, vindo do meio fio. Chamada a atenção, entrecerrou-os para observar melhor o que era... Ah, um bebum tropegando por lá. Poderia estar fazendo algo mais útil... isso ela pensando sobre o cara lá embaixo. 

O cara lá embaixo... ele mesmo queria trocar de nome. 
Queria ter bebido o conteúdo daquela garrafa que tinha em mãos, que pegou do bar num surto de raiva ao encontrar sua mulher com outro. Segurou-se para evitar confusões, era melhor sair dali. Saiu, vagou, andou várias avenidas, sem rumo mesmo. Que eu tinha feito de errado? O que eu fiz ou não fiz? Questões e mais questões dominavam sua mente. Andando por qualquer lado, uma hora, assim do nada, quis andar só num meio fio. Desceu toda uma avenida, passando por áreas comerciais e residenciais, os carros nas pistas ao seu lado corriam de acordo com a noite de sexta. Debatia com ele mesmo toda a cena que viu no bar. Na verdade nem chegou a entrar, só viu, pegou uma garrafa qualquer que tinha numa mesa na calçada, onde um bebum já roncava cedo da noite, saiu. Um acesso de raiva e cólera o dominou ao perceber que nenhuma conclusão a que chegava era o bastante... não explicava o que ele queria saber. O brilho dos cacos na grama do meio fio refletiam a luz dos postes da avenida. Ninguém parou para observá-lo, estavam todos com suas vidas, reclamando, falando mal de algo, sem estar de fato em má situação. Todos tinham problemas, ele mesmo tinha os seus e agora mais outro. Mas sempre tem alguém que é pior. 

Parado, ainda olhando os cacos próximos ao seu sapato, pensa que, mesmo em uma situação crítica, mesmo cheio de problemas, mesmo reclamando deles, ainda tinha uma vida melhor que muitos outros que vivem nas ruas. Mesmo na merda, ele tinha suas poucas felicidades. Tinha trabalho, casa e "esposa". É, muita gente é feliz e não sabe. Essa merda que todo mundo reclama, como muitas vezes ele já reclamara e ainda vai reclamar mais, por força de hábito quase cultural, não é nada em relação a outras merdas e injustiças do mundo. Tinha gente com pior e melhor vida que ele, belos reclamões. 

Ádria ainda observou o bebum por uns minutos. Não parecia tão trôpego, até que tinha equilíbrio bom o bastante para se agachar perto da garrafa que quebrara ali a pouco. Devia estar tendo visões e filosofias, epifanias e algo mais. Que ela ainda fazia ali observando-o? Tinha que voltar para sua papelada, tinha mais o que fazer... a dor de cabeça não cessara, mas havia dado um desconto. Ah, queria ela estar descansando, relaxando, de pernas pra cima, vendo qualquer bobagem do que terminar de arquivar tudo aquilo que o chefe pedira. Ô povo que reclama de barriga cheia. 

um dia eu volto e reorganizo a ideia melhor.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Pérola para pensar

Ouvi no outro dia dizerem assim:
"Estava relembrando o passado com essa música..."
Relembrando o passado, relembrando o passado... existe relembrar o futuro?
Fica pra pensar, não?


quinta-feira, 29 de março de 2012

O ponto que a humanidade chega...

Ela, a jovem senhora pediu parada para o próximo ponto de ônibus, mas arriscou em um grito, que ultrapassava a conveniência da situação, requiriu ao motorista que não esperasse chegar à próxima parada, que parasse ali mesmo onde passava o transporte coletivo no seu ritmo próprio. Ele, seu moço motorista cansado, respondeu que até o faria se não fosse o guarda de trânsito mais a frente, que notificaria o comportamento do homem que dirige o transporte por imprudência quanto a parar em um lugar que não está destinado a paradas, além propriamente de estar na faixa do meio da pista, que atrapalharia vários carros e quem sabe o que mais poderia acontecer. Ele foi gentil, não parou, porém se justificou. Ela resmungou, praguejou e ironizou. A jovem senhora fechara a cara.

Se o motorista aceitasse sua proposta, ela poderia até caminhar menos, chegaria quem sabe na hora se estivesse atrasada, mas o outro (ou os outros) que deixaria para trás, ela não pensa no problema que lhes traria... Seus pés poderiam estar doendo pelo cansaço da vida, os ossos gritando para cessar a caminhada, ela só pensava nisso? E o motorista, a marcação do ônibus pelo guarda, a cobradora naquele começo de tarde, enfadigados de fome, com a bunda já no formato da poltrona em que trabalham, que procuram mil posições para facilitar a corrida de sangue em suas veias para não ficar numa mesma e sentir as dormências do ofício? Isso sem falar de todos os outros veículos que estavam vindo atrás... e se houvesse algum desatento, um imprudente, um nervoso, que batesse em outro ou mesmo no ônibus, por ele ter parado ali onde ela pedira, no meio da pista? A jovem senhora talvez não agradecesse o favor, sairia com seus pensamentos, seguiria seu caminho e todos que ficaram atrás, na merda. Capaz dela mesma inferir como o trânsito é perigoso, que as pessoas não sabem respeitar quem passa, que ninguém pensa em ajudar o outro. Hipocrisia? Não, isso não passaria por sua cabeça...

A jovem senhora, então, passa o restante do caminho, de onde exigiu a parada à parada oficial, ponto de ônibus onde muitos outros esperavam pelo transporte, reclamando em voz elevada a chamar a atenção dos passageiros como se tentasse os convencer de seu ponto, que lhe ajudassem a gritar com o motorista, até mesmo xingar, como muitos fazem quando estes passam de uma parada ou fecham as portas antes de todos saírem. O motorista respondeu, repetiu na verdade, seus motivos. Ela, não quis saber. Tinha "opiniões" bem "formadas" e não estava gostando do tratamento que estava levando. Para o moço, com o pouco de paciência que lhe restava, resmungou um pouco ainda. Pensava de quem melhor merecia o "obrigado", da sociedade por seguir seus preceitos, ou da jovem senhora no pedido inusitado.  

Os passageiros não se meteram. Alguns riram, fizeram cara de desentendidos, viraram a cara, ouviam suas músicas, ouviam seus pensamentos e só. Tampouco a cobradora, ela apenas pediu compreensão à jovem senhora, que seu pedido não teria como ser atendido. Sem graça pela ignorância da mesma, a cobradora se calou, enquanto o motorista ia parando onde, em seu ofício, estava correto, onde pelo pedido inicial de parada, ele deveria estacionar. 

Ela desceu. 
Desceu dizendo "não é a toa que 'alguns' motoristas são roubados" e que "acontecem coisas com eles e eles não sabem o porquê". A cobradora deu de ombros, sem ter o que retrucar, para não dar margem a mais discussão. O motorista tentou retrucar, mas já não era ouvido. E uma passageira, que conseguiu acompanhar esses poucos minutos críticos, viu tudo isso descrito, não pensando numa ironia maior, proferida pela jovem senhora. A passageira também não poderia apaziguar a situação, nem se meter na história. Restou-lhe apenas rir um riso baixo de quase indignação, uma troca de olhar com a cobradora perto dela, diálogo mudo de "o que não se vê nessa sociedade", meio resignada por essa humanidade tão cheia de si, razões pretensiosas que esquecem de todo um resto que compõe o mundo, mas crente que existem algumas pessoas que ainda carregam o pouco do pó da esperança.

É, né?

E você, o que faz?

Tem gente que lê...
Tem gente que lê e escreve.
Tem gente que lê, escreve e estuda.
E tem gente que lê, escreve, estuda e explora, a amada Literatura.

quarta-feira, 21 de março de 2012

20 de Março - dia do Blogueiro

(um dia atrasada)


- Você escreve?
- Sou destra de instrumentos finos e pontiagudos e ambas em digitalizações.
- Você entendeu o que eu disse.
- Você também.


terça-feira, 20 de março de 2012

Usar e abusar da primeira pessoa: narração em jogo

FOSTER, Thomas C. Para ler romances como um especialista. Tradução: Maria José Silveira. São Paulo: Lua de Papel, 2011. 288 p.

trecho de cap. 3 "Quem é o responsável aqui?"

Achei essa parte muito digna. Quando achamos que pode haver um limite, eis que a literatura arruma um jeito de remexer as estruturas e surpreender.

O problema com a narração em primeira pessoa. Estas são as desvantagens que a tornam espinhosa:

a)   O narrador não pode saber o que as outras pessoas pensam;
b)  O narrador não pode ir aonde as outras pessoas vão quando ele não está presente;
c)   Com frequência ele está enganado sobre as outras pessoas;
d)  Com frequência ele está enganado sobre si mesmo;
e)   Ele só pode ter uma compreensão parcial sobre a verdade objetiva;
f)     Ele pode estar escondendo alguma coisa.

Dadas essas limitações, por que um escritor escolheria empregar esse ponto de vista tão duvidoso? Pense nas vantagens:

a)  O narrador não pode saber o que as outras pessoas pensam;
b)  O narrador não pode ir aonde as outras pessoas vão quando ele não está presente;
c)  Com frequência ele está enganado sobre as outras pessoas;
d) Com frequência ele está enganado sobre si mesmo;
e)  Ele só pode ter uma compreensão parcial sobre a verdade objetiva;
f)    Ele pode estar escondendo alguma coisa.

[...]
O fato de serem apenas seis as opções, e na verdade mais para quatro para todas as intenções e propósitos, realmente não limita muito a maneira como as histórias são contadas. Os romancistas podem misturar e combinar, ajustar, variar, e simplesmente abusar das opções que se lhes apresentam.