domingo, 1 de abril de 2012

Contadores


- Olá, pequena contadora de navios.
- Olá, grande contador de histórias.
Felicia sente o vento praieiro bater diferente na lateral direita, porque o velho senhor tinha dado uns passos e chegado ao seu lado. Ela estava na orla a passeio com uns amigos e, pelo costume de criança, deixou a mesa da lanchonete, pediu licença, deu uma desculpa de banheiro e foi até umas árvores distantes da área comercial da praia. Felicia já tinha seus 25 anos e por todos esses anos, sempre ao ir à praia, ela tinha que ir contar navios. Se perguntou várias vezes sobre o que era essa mania, como começou, porém, assim como são os sonhos, não havia lembranças de como tudo começara. Só sabia que acontecia, realizava. 

Algumas pessoas se sentem aliviadas ao ver o mar, se deslumbrar com as ondas, molhar os pés, sentir a areia, respirar o sal, catar conchinhas... Felicia não se aliviava em nada, só... gostava de contar navios. Havia problema nisso? Não, era diferente. 
Era noite. Dizem que a lua tem uma força cósmica que faz as ondas ir e vir, dizem o mesmo sobre o vento. Felicia não era expert no assunto para saber. Nem tinha se preocupado de saber disso, tampouco de perguntar a alguém. Ela só queria ver os navios, contá-los.

O velho senhor, pouco mais de 70 anos, era uma pessoa que Felicia já havia encontrado umas duas vezes pela praia. Uma vez ouvira que ele era um eremita, que tinha tido uma boa vida e que agora vivia por andar pela orla, afeiçoado pela praia e mar. Isso foi o que ouviu de um pipoqueiro conversando com um cliente ao vê-lo passar. Noutra, um garçom o tinha identificado como o poeta das paredes. Poeta das paredes? Felicia lembrou-se de que, quando criança, falavam mesmo do poeta das paredes. 

A primeira vez que topou de verdade com ele foi numa tarde que tinha chegado à praia, nem ela se lembra quando, um dia aí que passou, e a primeira coisa que fez foi se distrair da conversa com os parentes, deixá-los andar mais a frente apressados e parar por um instante do lado de um senhor, assim, bem ocasional. Ele estava olhando o mar de longe, do calçadão, e ela tinha parado para contar os navios. Tinham sete, dois deles virados e um quase não visto, esse ela teve que entrecerrar os olhos para perceber melhor. O senhor de primeira achou que ela iria falar com ele, quando viu que não, estranhou o comportamento da moça. Perguntou o que estava fazendo.

- Estou contando navios.
Ele pensou que era brincadeira. Mas a voz da garota tinha saído tão natural, como uma confissão, um pensamento que escapuliu daquele seu momento concentrado de contagem. Ele não falou mais nada, ela seguiu em frente para alcançar os familiares.

Da outra vez, depois que ouviu as palavras do pipoqueiro e do garçom, tinha parado para contar os navios quando ele mesmo se aproximou como quem não quer nada. Nessa manhã havia muitos navios parados, tanto que ela fez a conta três vezes pra se certificar que era aquele número que de primeira tinha contado. 
- Contando navios?
- Sim. E o senhor, contando histórias?
- Eu não conto histórias.
- Sei quem é.
Ela achava que sabia. Logo foi chamada atenção e saiu sem dar tchau. 

No presente, no silêncio deles, lembrava de todos esses pedaços de memória. Apoia-se no peitoril, olha mais a fundo da distância entre eles e o mar, entrecerra os olhos para depois dar de ombros e virar-se para o senhor. 
- Por todo esse tempo li o senhor nas paredes e nunca me passou mais que um nome.
- Não eram histórias. Eram só momentos de inspiração.
- O senhor foi pintado lá. De alguma forma, conta histórias.
- Palavras foram pintadas, não eu. 
- Uma metonímia então. O pouco que foi espalhado pela cidade, seja inspiração, seja o que for, é uma história. Não muito notada, mas se de Homero resgataram algo, por que não do poeta das paredes?
- Sou só um homem que uma vez escreveu, que das obras divinas, como a mulher que nos cria, achou um pouco de inspiração e deixou correr umas linhas. 
- Linhas correndo por toda a praia, na verdade. Falando dos sentimentos mais nobres. Pode ter inspirado outros mais.

Eles não mantém contato visual, não assim direto. Ora ela vira, ora ele vira, o mar sempre a frente, o vento sempre os batendo. Ele não parecia tão antissocial como alguns tinha falado, ele só parecia... solitário.
- Não escrevo mais, não conto mais, nem me inspiro mais. São frases batidas já.
- Também não conto mais, navios quer dizer.

Ele se espanta por um segundo. Não a conhecia, mal havia trocado conversa com uma outra vez, não sabia nada... mas ela não contando mais navios? Pareceu a coisa mais estranha. Como uma mania assim ela perdeu, como se quebra um hábito sem mais nem menos? Não podia ser. 
Não podia mesmo. Felicia, marcada por um sorrisinho de canto, o outro canto puxado que o senhor não tinha acesso, sentiu por visão periférica a reação dele, por isso tendo sua atenção, apontou para o mar com a mão mesmo. Não havia navios nessa noite, nenhumzinho para ser contado.

Ao perceber isso, mesmo o tempo todo ter olhado para aquele mar, ele quase deu um suspiro baixo. Riu da mulher, quase menina aos seus olhos, brincalhona por natureza, ele sentia. 
- Eles voltarão, eles sempre voltam.
- O mesmo de sua inspiração, ela voltará, sempre volta.

E sai, sem tchau ou boa noite. Ela só abraça o corpo pelo vento praieiro que fazia, anda a passos ritmados, senta-se de volta à mesa, os amigos perguntam sobre sua demora, fazem piada sobre banheiro e ela continua de sorrisinho disperso, sabendo que nessa noite poderia não ter navios para contar, mas houve um encontro a mais que valeu como se tivesse contado. "Não só conto navios" pensa consigo.

O senhor, por outro lado, fingiu não ter dado bola, mas só foi chegar em casa que não resistiu a pegar uma caneta que deixava do lado do telefone, o bloquinho também. Não havia navios nessa noite, mas havia histórias para contar. Seu hábito também não tinha ido sem mais nem menos, ele só precisava de um pouco de inspiração, a que por muito buscou no mar e encontrou com ele a vontade de voltar a escrever. Foi só uma conversa, no entanto, para ele rendeu mais que 15 páginas. Não que estivesse contando... ou estava?

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